Memórias: o bairro Girassol
Este bairro era pacífico, na medida do possível, mas eu sentia que vivia num mundo à parte. Os meus pais tinham ambos instrução, eu tinha regras em casa, não ficava na rua durante os dias de semana até tarde, os meus pais não eram empregados de nenhum dos vizinhos, enquanto que os pais de alguns amigos eram mulheres a dias de alguns de nós ou mesmo funcionários em alguns negócios de outros vizinhos e principalmente, tanto eu como a minha irmã tínhamos uma relação normal com uma instituição chamada escola.
Não foram poucas as vezes que me senti o puto careta, menino da mamã, que não joga à bola nas arcadas nem vai tocar às campainhas dos vizinhos à 1 da manhã só para chatear. Não foram poucas as vezes em que me senti aliviado por não ter paricipado numa qualquer brincadeira palerma que acabou no hospital ou a fugir da polícia.
Mas lembro-me de muitas estórias e personagens dignos de serem relembrados.
Lembro-me do Lelo, filho de uma vizinha que chegou a ser nossa mulher a dias, do Maugão, que vivia numa família da qual nunca percebi as origens nem a relação entre todos eles. Sei que eram da Família do Jesus, treinador de futebol, do Russo, jogador de futebol, eram todos primos uns dos outros e todos chamavam madrinha a uma senhora já de idade, muito simpática, que devia ser o sustento de toda aquela criançada, incluindo um miúdo angolano órfão de pai e mãe. Lembro-me do Zé das Drogas, o dono da farmácia que era um emproado, da Bruxa, a mulher do nosso senhorio e que no Sto António ao pedirmos uma moedinha nos mandava baldes de água pela janela, da Bruaca da mercearia (que já tinha sido da Chica Rata), que trouxe o progresso à mercearia do bairro instalando uma caixa registadora tipo supermercado e uma balança digital para pesar o fiambre. Do senhor Pimpão, que era enfermeiro e não foram poucas as vezes que coseu cabeças partidas pelas brincadeiras dos putos, da dona Ema dos rissóis, da dona Angelina e do senhor Arnaldo (nanala, como eu lhe chamava), do Caguinhas, da Careca, da velha Piscareta e da avó Mangerica, ambas avós do meu vizinho e amigo, filho da cabeleireira que lavava a cabeça das clientes no lava-louças da cozinha, até que se modernizou e montou um cabeleireiro na sala do apartamento onde viviam.
Lembro-me da Tafina que se amigou ao Zé das Drogas, passando este a ser o Tafão e padrasto do Tafilho, da dona Dilma, a padeira casada com o guarda nocturno que dava tiros para o ar às 3 da manhã de modo a espantar os seus próprios medos e que, para além de lhe terem roubado a arma, resolveu interpelar uma senhora que saía do cabeleireiro com um ramo de flores na mão, alegando que não a conhecia e portanto era suspeita. A pobre senhora ia a caminho do cemitério, na sua mais pura devoção a um qualquer familiar perdido. Lembro-me do senhor Quim, um homem estranho que pesava quase 200 quilos e que ganhava a vida a acumular papel num armazém na cave do meu prédio, de um casal que era vizinho da dona Ema, a dos rissóis, e que, sempre que havia eleições ou era feriado nacional, punham a bandeira de Portugal na varanda.
Lembro-me de num dia 31 de Dezembro, pelas 9h da manhã a dona Dilma, a simpática padeira, vestida com a sua bata branca, tocar à nossa campainha para nos avisar que o carro da minha mãe, um Fiat Panda vermelho, estava sem duas rodas. Roubaram as duas rodas do lado direito durante a noite deixando o carro assente em dois toros de madeira.
Lembro-me do café Oh Salsinha, onde comíamos caracóis, do Bigode do Meu Tio com os melhores pastéis de nata do bairro, do supermercado Pão de Açúcar, onde para lá chegar tínhamos que atravessar um descampado, a correr, para não sermos assaltados pelos miúdos do bairro 6 de Maio.
Lembro-me ainda as inúmeras vezes em que se abriam valas ao longo da rua para passar cabos, ora de água, ora de telefone, ora eléctricos, ora por nada, pois havia que dar trabalho às pessoas, principalmente em ano de eleições. Lembro-me das árvores em frente do meu prédio terem todas nome, a árvore dos piolhos, a árvore das aranhas e a nespereira que, na época em que dava fruta, era assaltada pelos putos do bairro das fontaínhas, o que muito arreliava os meus vizinhos.
Não sei o que é feito de todos estes personagens, uns já cá não estão, outros talvez, mas fizeram todos parte de um filme real que preenche muitas das minhas memórias, na Avenida Curry Cabral, do Bairro Girassol.
Continua...
Comentários
Ora, menino, temos aqui a génese de um António Lobo Antunes, mas em versão proleta...
Gostei muito! Continua (mesmo)!
onde se lê "lá fui para" leia-se "lá fui parar"
Um abraço.
ZM
Havia os andaimes dos prédios onde fazíamos acrobacias e os eternos buracos na rua que serviam de trincheiras e esconderijo quando jogávamos às escondidas.
E no meio de tudo isto houve uma mãe desempregada que agarrou na miudagem e criou um grupo de teatro e um espectáculo de variedades (tão importante que se realizou no UPVN a União e Progresso da Venda Nova e em mais 3 ou 4 palcos igualmente famosos). Uma mãe que inventava máscaras para todos os putos no Carnaval, que fazia bolos de coco, cenários, conchas pintadas, esculturas a partir de pedras da calçada, biscoitos deliciosos com formas inusitadas e plantava canteiros com morangos na pequena varanda para nós, mesmo na cidade, podermos ver coisas a crescer!
Há memórias assim, que povoam todos os recantos, mas que precisam de meia dúzia de linhas para virem ao de cima. Obrigado mano.
Haverá alguma Fernando Meirelles português que queira passar esse teu post para filme, qual "Cidade de Deus"? :-)
Francamente!... Já não há respeito...
Dizes que continua, mas.......quê?
Devagar, devagarinho ou parado?
https://www.facebook.com/pages/Retalhos-da-Venda-Nova/251966238168392
Paula da lavandaria da D.Maria