Memórias: o murro

A escola preparatória para a qual deveriam ir os miúdos do bairro Girassol era a escola preparatória de Alfornelos que fica entre a Brandoa e o Bairro da Colina do Sol, perto da Pontinha e não é propriamente uma escola das Avenidas Novas.

Era a minha escola preparatória.

Num fim de um dia de aulas do sexto ano, esperava o autocarro para o regresso a casa, junto dos meus colegas e amigos. Na misturada de gentes de quinto e sexto ano surge um conflito qualquer que, já nem me recordo porquê, fez com que eu necessitasse de fazer valer o meu estatuto de aluno de um ano mais avançado e que não estava para aturar putos.

O tal puto, do quinto ano, não me recordo porquê, insultou-me. Eu, sem mais nem ontem, dei-lhe um valente empurrão para trás da paragem do autocarro. Ora esta paragem era daquelas que costumavam ter um vidro para proteger os passageiros do vento e do frio, mas como estávamos em pleno subúrbio Lisboeta o vidro já não estava lá e, o puto, caiu desamparado sobre um silvado, com a mochila carregada de livros.

Depois de se ter desenvencilhado, com a destreza de um cão de caça que procura a sua presa por entre os arbustos, levantou-se, furioso e espetou-me um murro na cara.

É nestas alturas que parece que o mundo pára à nossa volta. Só se ouvia o respirar ansioso do público, em suspenso, à espera da minha reacção. A carga emocional pesava sobre mim e uma reacção urgia. O autocarro já rugia a subir a ladeira que vem da Brandoa obrigando-me a reagir sem pensar. Foi então que decidi, à boa moda Stallone na saga Rocky, alçar o braço esquerdo (não que seja canhoto mas a mão direita estava ocupada a segurar a mochila, pendurada num só ombro), fazer uma cara raivosa e concentrar toda a minha força no punho esquerdo.

Este processo foi tão lento e denunciado que me recordo dos olhos dele, parados, vidrados a olharem-me de baixo para cima, como que a aceitar a vingança. Afinal tinha sido ele o causador do reboliço e estava a preparar-se para o impacto.

A minha mão aproximou-se da sua face direita no preciso momento em que ele, antevendo o desfecho, a virou. Poff! Acertei-lhe em cheio no maxilar inferior direito. A minha cara de dor foi tão denunciadora como a do susto que ele apanhou.

Numa tentativa frustrada de disfarçar a dor e não mostrar fraqueza, salvo pela chegada do autocarro, virei costas e lá fui em direcção à porta agarrado à mão, com as lágrimas a quererem romper.

Ele entrou no autocarro e sentou-se no banco em frente do meu mas não trocámos qualquer palavra.

Eu ainda sentia a adrenalina a escorrer pelas veias e o corpo a tremer sem que o conseguisse controlar. O latejar do coração no dedo anunciava uma tarde de sofrimento agarrado à mão esquerda.

Ainda me passou pela cabeça que se me estava a sentir assim o outro ainda estava pior, mas não. A minha falta de jeito para pugilista tinha surtido um efeito mais devastador no atacante do que no atacado.

À noite fui com o meu pai ao hospital de Santa Maria para pôr uma tala no dedo indicador esquerdo, pois estava fracturado.

No dia seguinte apareço na escola de braço ao peito e vejo o meu adversário com uma pequena marca negra no queixo, que passou no dia seguinte enquanto que eu andei 3 semanas com o dedo entrevado. Assim que me viu dirigiu-se a mim, pediu-me desculpas e ainda perguntou se o meu pai não ia fazer queixa dele ao Conselho Directivo. Ao que eu respondi, perplexo com o despropósito da pergunta, mas sem vacilar: Não, desta vez passa!

Comentários

jordi disse…
Chiça!
Isso é que é uma escola para a vida!

P.S. Prometo que vou passar a ter mais cuidado contigo...
sgs disse…
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
sgs disse…
viver nos subúrbios é assim, um filme do Stalone com banda sonora do Bruce Springsteen.

Força mano, o que importa é o simbolismo da coisa!
Anónimo disse…
Ao contrário do que disse o Jordi, ele, o Daniel, é que tem de ter cuidado com ele. Na falta de jeito para Stallone, o melhor é ser bonzinho, disfarçar e não alçar a mão, muito menos o pé. A história diz que é grande a probabilidade de sair asneira.
Anónimo disse…
Ao contrário do que disse o Jordi, ele, o Daniel, é que tem de ter cuidado com ele. Na falta de jeito para Stallone, o melhor é ser bonzinho, disfarçar e não alçar a mão, muito menos o pé. A história diz que é grande a probabilidade de sair asneira.
fover disse…
as famosas escolas de madeira....! ou estou enganado??
montanhacima disse…
Fover: os pavilhões pré-fabricados em madeira pertenciam à escola secundária da Brandoa que ficava paredes-meias com a peparatória de alfornelos.

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